O dia que o Rede ao Redor foi parar na Noite Cultural




Quem desce a rua Areal de Cima não sabe, definitivamente, o que lhe espera. Nem mesmo o clima boêmio do tradicional bairro do 2 de Julho serve de prelúdio para o que está por vir...

Já era noite e eu seguia em direção ao 2 de Julho depois de caminhar a Carlos Gomes. Fui passando por ruas estreitas com cadeiras sob as calçadas, ouvindo burburinhos, risadas, sambas e pagodes. Todo aquele universo de tenra e dosada felicidade, combinava em muito com a cara do bairro. Afinal de contas é um bairro secular, pacato, que sente as insistentes dores nos joelhos, comuns com a idade, mas que tem um sorriso frouxo que se abre por inteiro sem temer. Mais adiante, eu alcancei o largo do bairro e passei pelo mercado municipal do 2 de julho. Esse já fechado pelo adiantar da hora. Foi nesse momento que eu virei a direita e tudo mudou.

Ao virar a direita e dá alguns passos, eu entrei em uma outra realidade desse velho bairro que eu ainda não havia conhecido. Não era mais o universo boêmio que tomava conta do espaço, mas o silencio e o vazio. Demorei algum tempo até que meus sentidos viessem a se acostumar com aquela nova realidade. Lembro que tinha uma senhora sentada numa cadeira a frente de sua casa. Ela observava a rua e mais adiante dois jovens na calçada conversavam. Muito diferente de alguns metros atrás, onde tinham tantas pessoas sob as calçadas sorrindo e conversando entre os goles de cerveja gelada. Nesse momento me permitir apreender o ambiente: as nuvens vagas que passavam espaçadas em direção ao mar, o clima úmido que envolvia a pela, a cor das casas um tanto desbotadas, a penumbra que se intensificava a cada metro, os paralelepípedos que calçavam a rua, tão escuros e tão bem encaixados que sempre me fazem pensar nas infinitas histórias que eles já vivenciaram. Todos esses signos me transportaram para um universo doméstico de paz.

Contudo, ao chegar no número 40 da rua Areal de Cima, por um breve momento, fiquei preocupado. Segurei firme a mão que vinha acalantando meus dedos e me deparei com aquele edifício. Com uma arquitetura imponente, reduzindo a calçada a uma pequena trilha e dando um ar soturno ao fim da rua. As paredes negras da Casa Preta não estavam nem um pouco em conformidade com o imaginário que se tem de um espaço de evento.

Mas para a minha surpresa e felicidade, o interior da casa se abriu para mim como uma flor se abre ao mês de setembro. Paredes em cores vivas, fotos de peças teatrais e de dança sob as cores, esculturas nos cantos dos corredores e o burburinho forte que aumentava rápido a cada passo e me deixava ansioso. Quando alcancei o fim do corredor e me deparei com aquela cena não pude evitar o sorriso que já se desenhava no meu rosto. Foi uma das cenas mais bonitas que já vi. Todo os espectros de cores do arco-íris me deram boas vindas em meio a plantas, tambores, desenhos, luzes, sorrisos, abraços, amores e a um mar de gente que se comprimia no quintal da Casa Preta. 

Antes mesmo de descer os degraus da escada eu já estava embebido dos mínimos detalhes que se multiplicavam naquela cena. Ao chegar no fim da escada relutei um momento antes de entrar no mar de gente que estava ali. Contudo, assim como a vaga do mar puxa por baixo, me senti tragado por toda aquela felicidade que emanava das pessoas. Aquele clima de alegria hiperconcentrado dizia respeito à passagem do Varal de Cordel que acabara de se apresentar. Então eu atravessei o salão, me posicionei junto a porta e aguardei as estrelas da noite que estavam por vir - grupo de Maracatu Ventos de Ouro.

E como sempre, elas não decepcionaram. As mulheres feministas do baque virado, empunhando seus instrumentos e suas vozes, com peitos inflados e sorrisos nos rostos, entoaram o ritmo ancestral do maracatu, deixando os espíritos eufóricos. A força dessas mulheres refletia-se no som que elas enunciavam. A cada marcação a pele sentia a vibração das alfaias e a alma entrava em ressonância com aquele espetáculo. Além disso, elas cansaram de ostentar um som tão limpo, que sempre que acabavam as canções um silêncio ensurdecedor se apossava do espaço, até que as mentes processassem aquele espetáculo sonoro.

"No maracá, no maracatu" ou "é nas ondas do mar, vou levar flores pra minha mãe Yemanjá", a musicalidade das Ventos de Ouro sempre lhe impõe um dilema: dançar ou assistir a apresentação. E essa não é uma escolha fácil, sobretudo naquela noite onde tudo estava tão intenso e concentrado. Os olhos procuravam a apresentação, enquanto que as pernas não conseguiam se manter paradas. Os braços abraçavam, mas os ombros subiam e desciam. Assim, o corpo todo, parte por parte, foi se tornando autônomo e dançando cada fez mais o maracatu.

Próprio do povo negro, essa expressão cultural, o maracatu, permanece firme apesar do genocídio e etnocídio secular que se esgarça sobre a população preta. Entretanto, ele faz, quase que imediatamente, com que nós voltemos às raízes ancestrais e reafirmemos nosso orgulho e nossa força mais íntima. O maracatu é sim uma ferramenta de luta, mas não só racial como também de gênero. O Maracatu Ventos de Ouro rasga o véu do silêncio e denuncia o machismo que estrutura a sociedade e impõe aos corpos femininos um duro fardo de opressão sem descanso. Como um hino, elas cantam "Na Rua" de Aline Lobo, denunciando a interseccionalidade da opressão que recai sobre a mulher preta. E elas também vem tomando pra si o protagonismo no espaço cultural em Salvador, apesar das dificuldades de se trabalhar a cultura popular.

Com o fim da apresentação das Ventos de Ouro começou a se apresentar o grupo A Corda Samba de Roda. Eles vieram direto do bairro de Paripe para se apresentar naquela Noite Cultural. E em meio a tantas cores, foi mágico presenciar a terra tremer com o movimento frenético dos pés que sambavam sem cessar. No salão a dinâmica fazia com que todos sambassem juntos e separados ao mesmo tempo. Com ou sem licença. Com mais ou menos samba no pé. Mas repletos de alegria.

Em um momento, entre uma música e outra, se ensaiou um coro que ficou simplesmente perfeito: todo dia 2 de fevereiro/ Margarida sai para sambar/ Mas depressa vai primeiro/ Jogar sua rosa pra Mãe Yemanjá. 

E cantando e dançando eu fui atravessando a primeira Noite Cultural desejando que ela nunca, nunca acabasse.

Mas, como tudo na vida, tanto as coisas perfeitas como as imperfeitas acabam acabando. E não foi diferente com aquela noite. Contudo, para a minha felicidade e satisfação, dia 17 de Novembro terá a segunda edição dessa noite mais do que especial que se revelou pura poesia. Mas que também me fez mergulhar em um universo sensorial, emocional, espiritual, político e ancestral sem precedentes. Não perco por nada !!! Obrigado ao Maracatu Ventos de Ouro.

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